Ele comprou alguns cds e logo passou, em suas próprias palavras, a “escutar música dentro da cabeça”. Sua mente virou uma verdadeira usina de ideias musicais, inclusive quando ele estava sonhando. Tony ficou obcecado, decidiu aprender a tocar piano e hoje, além de médico, é compositor – atividade que considera sua verdadeira vocação. É como se a descarga elétrica do relâmpago tivesse reconfigurado o cérebro do médico, liberando algo que estava escondido lá dentro. Mas como é possível ter uma vocação e não saber? E o que é vocação, afinal? Ela é hereditária? Já está programada no cérebro quando nascemos ou é adquirida com o tempo?
É possível ter mais de uma? Com que idade pode ser descoberta? Por que os filhos de gênios raramente herdam o talento dos pais? Você perde sua vocação se não exercitá-la? É possível descobrir uma nova vocação na idade adulta – sem ter que levar um choque na cabeça para isso?
O caso de Tony Ciccoria é extraordinário. Mas você provavelmente conhece alguém como ele. Sabe aquele seu primo que é advogado, mas toca nos fins de semana e daria um baita guitarrista de rock? Aquela amiga garçonete que leva o maior jeito para artes plásticas? E o seu tio que virou dentista, mas poderia ter sido jogador de basquete?
Todo mundo é capaz de se especializar, e ter prazer, em mais de uma atividade – isso porque, na verdade, nós temos múltiplas vocações. E há uma boa explicação para isso. “O cérebro aponta vários caminhos e, durante a vida, algumas das habilidades são inibidas para que outras sejam priorizadas. Mas a pessoa precisa ter várias opções, para o caso de não ser possível seguir algum caminho na sociedade em que ela vive”, explica o neurologista Benito Damasceno, da Unicamp.
É por isso que o cérebro também inclui aptidões ocultas, que a pessoa tem, mas não desenvolve, ou explora apenas como hobby. Elas funcionam como uma espécie de seguro evolutivo: se algo der errado, você já tem um plano B. E a seleção natural acabou privilegiando, justamente, as pessoas que tinham um plano B.
A vocação é formada por dois elementos: a aptidão que uma pessoa tem para fazer determinada coisa e o interesse que ela sente por aquilo. O interesse vem de fora, ou seja, é influenciado pelas experiências individuais e pelo ambiente em que cada pesssoa vive. É por isso que, muitas vezes, pessoas geneticamente idênticas (gêmeos) escolhem profissões diferentes. Já a aptidão, ou seja, a facilidade natural que uma pessoa tem para fazer determinada coisa, está escrita nos genes. É preciso ter o DNA certo. Em 2003, um grupo de cientistas australianos descobriu que os atletas de alto nível costumam apresentar uma modificação no gene ACTN3.
Se você possui essa mutação, tem grandes chances de desenvolver músculos mais fortes e/ou mais resistentes que os das pessoas normais, e portanto levar vantagem atlética. Como muitos pais sonham que os filhos sejam esportistas, criou-se toda uma indústria em torno disso: hoje, já é possível comprar, por US$ 150, um teste caseiro que detecta o ACTN3 em crianças de apenas 1 ano. Tudo para que os pais percebam o quanto antes a vocação dos filhos, e os coloquem para treinar desde cedo.
Isso porque parece haver um momento-limite para começar a desenvolver as aptidões. Entre 6 meses e 2 anos de idade, o número de neurônios cai drasticamente, e os que sobrevivem começam a se diferenciar, assumindo funções correspondentes aos estímulos que recebem. “Se uma criança ouve música, por exemplo, parte de seus neurônios se transforma em células capazes de diferenciar os tons musicais”, afirma o neurocientista John Fontenele Araújo, da UFRN. Já na puberdade, vem outro momento crítico: a capacidade que os neurônios têm de fazer conexões, ou sinapses, aumenta consideravelmente. Essa é a fase mais importante para estabelecer a conexão entre diferentes regiões do cérebro, o que é fundamental para desenvolver qualquer vocação – pois a maioria dos talentos é composta de mais de uma habilidade.
Um jogador de futebol, por exemplo, não é feito apenas de coordenação e força física: também precisa de inteligência espacial para visualizar e criar jogadas.
A programação genética do nosso cérebro é tão complexa que determina, inclusive, aonde nós podemos chegar. “Cada uma das áreas do cérebro é projetada como uma máquina de aprender”, explica o psicólogo Stephen Pinker, da Universidade Harvard.
E as características dessas máquinas estão inscritas no código genético. Ou seja: cada pessoa tem um limite nato, do qual não consegue passar. Se você não nasceu para pintor, nunca será um Van Gogh. Parte da sua vocação está, sim, programada no cérebro quando você nasce. Veja bem: parte. Há outros fatores envolvidos.
A vocação não é completamente genética, nem totalmente hereditária. Existe uma série de estudos afirmando que a hereditariedade do QI fica entre 40 e 80%. É por isso que os filhos de gênios raramente repetem o sucesso dos pais. Além de terem DNA diferente (pois ninguém é um clone exato do pai ou da mãe), vivem em circunstâncias inevitavelmente diferentes. Detalhes aparentemente banais podem fazer toda a diferença.
A sua vocação pode depender do mês em que você nasceu. Nada a ver com horóscopo. É pura matemática. No livro Fora de Série, o jornalista americano Malcolm Gladwell fez um levantamento dos melhores jogadores de hóquei e descobriu algo surpreendente: 70% deles nasceram entre janeiro e junho. Se você pegar o Guia Placar 2008, com estatísticas sobre os 13 maiores times do futebol brasileiro, verá a mesma coisa.
Dos 301 atletas que compõem o elenco desses clubes, 61% nasceram no 1o semestre – e apenas 39% no 2o. O mês que mais gerou jogadores foi janeiro, e o lanterninha foi, justamente, dezembro. Em testes de matemática, as crianças nascidas no 1o semestre têm desempenho até 14% maior que as demais. Einstein, Darwin, Newton e Stephen Hawking nasceram entre janeiro e março. Então quem nasce até a metade do ano tem mais aptidão física e mental? Será alguma coisa relacionada ao clima? Como é possível?
A resposta é mais simples do que você imagina.
Compare duas crianças que estão iniciando a 4a série, por exemplo. Uma delas nasceu em janeiro e acaba de completar 9 anos de idade. Já a outra, que veio ao mundo em outubro, tem 8 anos e 3 meses. Percebeu a diferença? Como a criança de janeiro é mais velha, seu cérebro e seu corpo estão bem mais desenvolvidos. Graças a isso, ela tem mais chances de ir bem na escola, conquistar a aprovação dos pais e ganhar mais autoconfiança. Com isso, tende a estudar e se aperfeiçoar cada vez mais, num círculo virtuoso que desemboca numa boa universidade (ou, no caso de quem joga bola, num bom clube). Mas, se você nasceu no 2o semestre, não se desespere, pois isso não impede ninguém de ser um fenômeno – John Lennon e Pelé vieram ao mundo em outubro.
Qual é a sua?
Na hora de descobrir as próprias aptidões, muita gente acaba recorrendo aos chamados testes vocacionais. Eles surgiram no começo do século 20, com a multiplicação das profissões – e, consequentemente, das opções. O matemático, historiador, engenheiro civil, advogado e professor de idiomas (ufa!) Frank Parsons foi um dos primeiros a perceber, em 1909, que estava difícil escolher uma carreira. Ele escreveu um livro que serviu como base para os serviços de orientação vocacional. Com o desenvolvimento dos testes de QI e de personalidade, a ciência vocacional começou a investigar as habilidades naturais das pessoas, até se associar por completo à psicologia e à psicanálise. Surgiram testes como o BBT, que mede o grau de identificação com uma profissão. Fotos de diversas atividades são colocadas diante do candidato, que escolhe quais delas agradam e desagradam. O problema é que, mesmo com todo esse arsenal, os testes vocacionais não são 100% confiáveis e às vezes geram resultados demais: se o teste indica que você pode fazer praticamente qualquer coisa, de que ele serve?
“As pessoas acham que ter mais de uma opção é estar perdido, mas é justamente o contrário”, explica a psicóloga Edilene Bernardes, da USP, especialista no teste BBT. “Quanto mais desenvolvemos nossas habilidades naturais, mais o cérebro se prepara para possíveis mudanças de rumo ao longo da vida.” É verdade. Vocação não é destino; ela depende do que você faz na vida. Einstein provavelmente não nasceu pensando nada mais elaborado do que qualquer outro bebê.
Ele adquiriu sua genialidade ao longo do tempo. Por isso, a melhor maneira de descobrir o que cada um sabe e gosta de fazer ainda é por tentativa e erro – experimentar várias coisas e ver o que dá certo. “Nossos interesses tendem a apontar para as habilidades naturais que temos, mas nem sempre isso acontece”, lembra a psicóloga Carmem Lobato, especialista em orientação vocacional da UFRGS. Por isso é tão comum ver pessoas desempenhando atividades para as quais não têm talento, ou gente que desperdiça a própria vida ao não exercer sua verdadeira vocação. Nem todos, afinal, têm a sorte de ser atingidos por um raio.